domingo, 23 de maio de 2010

Eu não sei na verdade quem eu sou.


Anos atrás, quando eu era apenas um moleque bagunceiro, meu pai me levou a um circo. Resmunguei, pois achava que era uma besteira. Porém, quando avistei aquele mundo tão mágico e tão colorido por fora, meus olhos brilharam de satisfação. E, apesar de tentar dar continuidade com a cara feia e fechada, a cada palhaço que via meus lábios puxavam um pequeno sorriso. Naquela época pensei que havia enganado papai direitinho, mas agora vejo que ele apenas me deixou enganar a mim mesmo.

É lembrando desses momentos que uma gargalhada me escapa. Meu pai e eu não costumávamos nos dar bem. Até hoje não sei se foi pelo fato de minha mãe me abandonar ou se por termos personalidades tão parecidas. Só sei que visualizo minha infância e adolescência atrás de momentos mágicos como o do circo, mas são tão raros que na maior parte das vezes uma lembrança negra nubla minha visão. É incrível o modo como amadurecemos e percebemos quanto tempo desperdiçamos com besteiras e rancores. O ódio é um sentimento traiçoeiro para uma pessoa.

Eu cresci e, por uma peça empregada pelo destino, descobri que meu pai tinha razão. Ele costumava me dizer que eu tinha o dom da música no sangue. Eu costumava debochar, ter raiva. A cada vez que ele saía em direção ao palco, eu repudiava mais e mais esse dom. Eu sentia inveja, um ciúme doentio. E não fazia ideia de como estava enganado. Acho que só me dei conta disso quando fiquei órfão. Quando comecei a olhar para frente e trilhar meu próprio caminho.

Foi por um acaso que me deparei novamente com a música. Numa noite quente de verão saí para dar um passeio na praia. Tinha dezessete anos e morava com o meu padrinho, um violinista aposentado, numa cidade praieira do interior da Califórnia. Por isso tinha o costume de caminhar na praia sob a luz as estrelas. Naquela noite em particular conheci a Melissa. Ela estava em pé na beira d’água, os cabelos loiros voavam por seu rosto corado. E sob a escassa luz da Lua, eu vi o quanto ela era bela. Sentei-me na areia e fiquei a observá-la, não demorou muito e ela se virou com seus olhos a procura de algo, como se sentisse que a estavam observando. Quando me achou, ficou me encarando. Nós não nos falamos. E eu nem tinha ideia do quanto estava próximo de descobrir na verdade quem eu iria ser.

No dia seguinte descobri que um circo visitava a cidade com seu novo espetáculo. A nostalgia me dominou e me forçou a ir conferir. O espetáculo foi maravilhoso, mas não estava preparado para o final. Era Melissa, foi assim que descobri seu nome. Vestida de azul claro, a loira fez o que todos menos esperavam, cantou. Sua voz era suave e despertava todos os meus sentidos. No final da canção estava completamente entorpecido. Naquela noite, após a canção, nos falamos.

O circo ficou na cidade durante uma semana, e todos os dias eu fazia questão de vê-la. Melissa tinha uma personalidade calma, mas também com ideais fortes. Ela lutava junto com sua família para manter o circo, a arte que eles criavam. Eu me senti atraído por essa causa. E a cada dia que passava nos ligávamos mais, passávamos horas e mais horas juntos. Tanto que foi natural o primeiro beijo acontecer e logo depois outro e mais outro. Fui descobrindo o significado da vida e do amor ao lado dela, tudo isso em sete dias. O amor consegue transformar o pouco tempo em uma vida inteira.

Na última noite dela, nós nos amamos na praia, na beira d’água. Quando voltei para casa, me sentia perdido, sem chão. Perderia o que mais significou para mim. Ela iria embora e eu não podia pedir para que ficasse. O circo era o seu lar, sua família, seu sangue. E perdido em lágrimas e pensamentos, adormeci. O sono foi agitado e o sonho o invadiu. Era meu pai, era sua música, era o circo, era o sangue. Eu tinha o dom da música no sangue. E foi assim que descobri na verdade quem eu sou. Um artista.

A minha sina de não querer ser igual ao meu pai saiu justamente ao contrário. Pois agora sou um músico, um músico circense. O espetáculo nasceu como num passe de mágica, e se transformou em sucesso absoluto. A beleza da música, da arte me fez enxergar o mundo, a vida e a felicidade. A arte me fez ser maior. Ela me tornou um homem, um profissional, um marido e daqui a alguns dias me tornará em um pai. Só espero poder dar o melhor pai para o meu filho, assim como o meu me deu.

sábado, 22 de maio de 2010

O Poeta Ridículo.

Certa vez Fernando Pessoa disse que toda carta de amor é ridícula, se não for ridícula não é uma carta de amor. Bem, não é que ele tinha razão?! O amor é ridículo. Os amantes são bregas. E os humanos são movidos por esse sentimento. É de onde tiram a força para sobreviver, permanecer e existir. É de onde se assemelham uns aos outros, compartilham momentos. É quando a troca de olhares intensos ocorre.

Era nisso que Bianca pensava quando seus olhos se depararam com Caio. Ela voltava da aula caminhando tranquilamente pelo parque que separava sua escola de casa. Bianca ainda era jovem, mal havia terminado a universidade, mas se sentia com uma idade imensa diante de seus alunos, principalmente diante de Caio. Não é que ele fosse infantil, pois passando longe disso ele era um rapaz doce, quieto e brilhante. E toda vez que Bianca o olhava, sentia uma força dominá-la. Ele era tão jovem e ao mesmo tempo adulto, todavia aquele olhar inocente sempre estava presente. Difícil de admitir, mas ela era uma fraca. Deixava, desesperadamente, se dominar por sentimentos e fantasias. Desde pequena as criava e, dessa vez, seu protagonista era Caio.

Ainda se lembrava do primeiro dia de aula quando Caio entrou na sala atrasado, os fios lisos e castanhos caindo no rosto maculado, que estava levemente corado pela correria; a respiração ofegante e a farda desmantelada cobrindo o corpo atlético. Naquele momento, Bianca sentiu vergonha de si mesma. Sempre fora séria e direita, mas reagira de maneira tão antiética que se sentira perdida. E depois daquele dia, Caio sempre passeava por sua mente. Ela, obviamente, jamais demonstrava qualquer encanto por aquele menino.

Um mês depois e a complicação estava feita. Caio era um aluno dedicado e cheio de fome por conhecimento literário. O carma estava posto, uma professora de literatura sentir atração justamente por seu melhor aluno. Em sua vontade de aprender, Caio sempre criava situações constrangedoras. Não importava aonde, parecia que ela sempre terminava sozinha com ele. Fosse na sala, na biblioteca ou até mesmo no parque, os dois sempre acabavam a sós. E então o inevitável aconteceu, Caio se apaixonara por sua professora. Aquela delicada mulher de cabelos misteriosos – às vezes avermelhados às vezes castanhos – que davam a perfeita combinação com os olhos verdes enigmáticos. Diante disso não restou nada que o impedisse de se oferecer para acompanhá-la até em casa. Ou até mesmo quando subiram os degraus que davam a porta, nada o impediu de segurar e acariciar timidamente as maçãs, rosadas por conta do frio, da face dela. E em poucos segundos, selar seus lábios. E ambos se perderam naquele momento doce. Pelo menos até Bianca se dar conta da besteira que fazia e mandá-lo embora.

A partir daquele momento a aparente amizade que eles tinham, sumiu. Nada de momentos exclusivos. Viam-se na sala e ponto final. Mesmo que Caio insistisse de todos os modos e jeitos, Bianca não cedeu. E fraca do jeito que era se escondeu na sombra de Thiago, o novo professor substituto de física. Thiago era gentil e bonito, mostrava-se carinhoso com ela. Por isso, ela resolveu aceitar suas investidas e, alguns dias depois, cometeu um ato impensado, aceitou o pedido de namoro dele. Meses depois, aceitou o pedido de casamento. Pensava ter encontrado a felicidade.

As aulas estavam terminando e a sala de Caio, por estar no último ano, decidiu fazer uma grande festa para os alunos e professores. Utilizaram a quadra esportiva da escola. No meio da festa, que estava animada com música, comida e bebida, Bianca deu por falta de Thiago e de Caio. Olhou para todos os lados, mas nem sinal de qualquer um dos dois. Levantou-se do local que estava e saiu pelos corredores à procura. Logo os gritos chegaram aos seus ouvidos. Seus olhos deram imagem ao barulho do corpo de Caio indo fortemente de encontro ao metal dos armários. Exclamou chocada, atraindo a atenção dos dois. Gritos rolaram, lágrimas foram derramadas, relacionamentos foram finalizados e paixões foram descobertas. Thiago feriu-a com a pior arma que existe, a palavra. Ela tentou negar tudo, ferindo assim Caio. No final, os três formavam uma cadeia onde Bianca era o centro, onde ela tinha o poder sobre eles. E ela acabou ferindo ambos e a si mesma.

Dias depois, final do ano letivo, Thiago fora embora sem se quer perdoá-la. Bianca, que ao terminar a última aula sem a presença de Caio, fazia o caminho pelo parque. E lá estava ele, esperando-a. Uma chama de esperança acendeu dentro de si. Ela se aproximou, enquanto ele continuava parado fitando-a. O vento frio balançava os cabelos desordenadamente. Caio não falou ou esboçou qualquer reação, apenas pegou um envelope de dentro do casaco e o entregou. Então, após soltar um suspiro profundo, virou-se e partiu. Bianca sentou-se e deu início a leitura da carta.

Abra todas as janelas que encontrar e as portas também. Persiga um sonho, mas não o deixe viver sozinho. Alimente a sua alma com amor, cure as suas feridas com carinho. Descubra-se todos os dias, deixe-se levar pelas vontades, mas não enlouqueça por elas. Procure, sempre o fim de uma história, seja ela qual for. Dê um sorriso a quem se esqueceu como se faz. Acelere seus pensamentos, mas não permita que eles o consumam. Olhe para o lado, alguém precisa de si. Abasteça o seu coração de fé, não a perca nunca. Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os. Agonize de dor por um amigo, só saia dessa agonia se conseguir tirá-lo também. Procure os seus caminhos, mas não magoe ninguém nessa procura. Arrependa-se, volte atrás, peça perdão! Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário. Alague o seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas. Se achar que precisa voltar, volte! Se perceber que precisa seguir, siga! Se estiver tudo errado, comece novamente. Se estiver tudo certo, continue. Se sentir saudades, mate-as. Se perder um amor, não se perca! Se achá-lo, segure-o!
(Fernando Pessoa)


Lágrimas rolavam em sua face. Eram de dor e arrependimento. Eram de um amor perdido. Olhou para trás e encontrou a figura afastada de Caio olhando-a. Bianca sabia o que ele esperava. Ela balançou a cabeça negativamente e viu como ele voltava a se afastar. Olhou-o até que simplesmente desapareceu. E soube que, no final, o poeta realmente tinha razão. O amor era ridículo. Porém, real. Bianca descobriu que desejava ter tido um amor. Ter tido aquele amor, o de Caio. Também descobriu que arrependimento é real, e mata. Aos poucos foi matando-a...